quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Ela brincava com os dedos perdida em algum pensamento desimportante. Não que se pudesse entrar em sua mente e se saber o que se entranhava por ali. Nem que se fosse possível avaliar a exatidão de suas prioridades, a ponto de se calcular o que lhe importava ou não. Ela tinha um jeito meio prisioneiro de sentir: se ria, não ria. Não chorava, se chorava. Não que houvesse algum meio de se saber se guardava no peito tempestade ou pouca brisa. Mas, enquanto o vento fazia o seu curso, enquanto as mulheres com olhar cansado encurvavam o corpo de frio, e os passantes pisavam a calçada molhada... algo dela, e estritamente dela, ficava no ar. Eu apanhava com as mãos frias, disfarçando. Com um esforço quase místico. Ela doía por dentro. E eu sabia com exatidão, talvez por me doer também. Vivíamos no mesmo mundo, eu e ela, respirando a fumaça indiscreta da solidão. Sentei à sua frente inquieto. E não pelo frio ou o cinza do céu. Nem pelos cachorros solitários da praça. Sentei à sua frente. Ninguém nos compreendia. Ninguém, entre pernas e olhares apressados.
Ela tinha o olhar ensimesmado. Olhava talvez para dentro de si. Fazendo talvez as perguntas que eu fazia. Não que se pudesse investigar as possibilidades do seu mundo, nem que eu ousasse averiguar com precisão os seus anseios. Eu lhe era um desconhecido. Ela me era uma estranha. E não havia entre nós qualquer comunicação que pudesse revelar o espírito. Mas eu sabia. Eu sabia muito sobre ela. Aquela estranha. Talvez a conhecesse de alguma outra vida. Quem saberá? Depois de algum tempo ela levantou e se foi, levando parte de mim. E eu fiquei com o frio e a chuva, respirando a fumaça indiscreta da solidão.

Juízo

Os deuses me negaram o paraíso
Quando, no afã da minha criação
Em meu peito, alma, coração
Deitaram o peso de um juízo

E eu, crescido assim, e com isso
Acabrunhei-me em contemplação
Caminhando, pois, na contramão
Do andar de quem não pensa nisso

Nisso de ser gente e já não ser
Pois que ‘o homem é cadáver adiado’ *
Mas se crê como ente soberano

E de pensar, assim, chego a doer
Pois, torrão no universo estrelado
Sou humano, nada mais que humano

(* O homem é um cadáver adiado - Fernando Pessoa)

Incandescente

Meu peito não é feito de aço
Metal superaquecido no fogo
Nem é de cobre a minha carne
Ou de titânio o meu sangue

Meu corpo, que não é feito de estrela
Nem carrega no ventre um semideus
É frágil feito a flor.

E se me sai dos olhos um fogo qualquer
(Minha ira incontrolável-incandescente)
É que sou como toda essa gente
E é de carne o meu coração.