quinta-feira, 21 de julho de 2011

Cumplicidade


Morrerei

Morrerei sóbria e profundamente. Com
o coração desavisado, a alma casta
De amor e de medo

E há de ficar um vazio solene em tua porta
A manchar esperanças
Remoer duras ausências

Teus
Serão os anseios, as noites mal dormidas
e o meu beijo irreal me fará morar em tua estante,
eternamente

Até que em algum desespero da vida, aos prantos
Tu morras também

Há de morrer casto, lentamente
De amor ou medo

Michellle Portugal

sexta-feira, 15 de julho de 2011

A origem da dor

Será de vício, de trapos, de sina
Será de vozes, de fases, de lira
Será de ânsia, de medo, de praxe
Será de lua, de vênus, de marte?

Se vem do frio, da chuva, da alma
Se é da lama, do corte, da praga
Se é da cisma, do baque, da queda
Se é do imo, do raro, da guerra...

“Só traz o medo, o vício que punge
e fica o sopro do vento que urge
e cala o imo aos trapos, por terra...”

Será de brisas, de lua, de morte
Será de uivos, de grilos, de raiva
Será de relva, de ondas, de choque
Será de ouro, de bronze, de prata?

Se vem da pena, das sobras, do calo
Se é da crise, do tino, das faltas
Se é do faro, das cores, do fato
Se é da chaga, da sombra, das notas...

“E jaz na lama a alma que punge
E fica o rastro do vento que urge
E segue o riso, sem cor, suas rotas...”

(Michelle Portugal – maio/julho - 2010)

A Mulher Invisível

Quarta feira pesada. Escura. Nem é noite ainda e eu já ouso arriscar que o dia acabou. Não porque falta luz. Não pelo silêncio. Talvez pela densidade dos olhares. Eles se cruzam rapidamente. Os de meu pai, numa resignação total, os de Solange - a mãe que eu jamais tive - aviltados. E eu não ouso falar nada. Não arrisco. Sou obstinada em minhas decisões.

A casa grande antecipa ansiedades, revigora medos, mastiga mentiras. Móveis rústicos e muito pó na sala inóspita, de quadros igualmente inóspitos, tolamente dispostos. Corajosos demais a exibirem ruazinhas de terra, mulheres de vestidos brancos com trouxas sobre a cabeça. Tédio. Esmiúço o meu tédio.

Não me lembro exatamente de como começou o dia, mas a percepção de tê-lo sabido cinza me assombrou no café da manhã. O cinza de que lhes falo é o cinza-chumbo. Não há tom algum, mas há o peso da cor. A casa amanheceu vazia e turva.

Preciso falar de Marília. Mulher de meia idade. Quase sem sorriso. É o que chamo de pessoa morta, ou que nunca arriscou nascer. Ela é invisível. Não fala, quando muito, o essencial. Não reclama e nada lhe parece doer, mas eu suponho que no fundo no fundo o mundo lhe pesa muito e que a vida, de uma forma ou de outra, lhe nega dignidade.

Eu sinto pena dela, e isso é tudo. Arruma a minha desordem. É uma boa arrumadeira, e isso é tudo também.

Lembro-me de tê-la visto entrar no quarto, cabeça baixa. Humilhada como sempre. Não me recordo de tê-la visto sair. Não importa. Talvez tenha decidido ir embora pra destino algum. Ou ajoelhado implorando a misericórdia divina. Talvez tenha morrido, nunca se sabe. Mas não ouso perguntar nada.

Eles se entreolham e abaixam a cabeça. Ainda é cedo demais e já escureceu. O cinza-chumbo engravida o ar, pesa as palavras entrecortadas e os meus ombros. Fico muda.

Michelle Portugal
14/07/2011